Paciente em uso de Bipap |
SÃO PAULO - Respire pausadamente. Conte até três. Solte o ar e repita novamente. Banal, não? Para pacientes com doenças neurodegenerativas da rede pública de São Paulo, a realidade pode ser outra. Um impasse financeiro de R$ 110 mil por mês deixou 113 pacientes com Esclerose Lateral
Amiotrófica (ELA) ou outras doenças neurodegenerativas sem acesso a respiradores mecânicos (BIPAP).
A crise começou em abril, quando a Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (Afip) proibiu a marcação de avaliações respiratórias no Instituto do Sono (IS). Sem o exame, os pacientes não conseguem a liberação do BiPAP, que auxilia na respiração e ajuda a prevenir complicações pulmonares causadas pela doença.
A entidade alega que desde 2010 realiza mais atendimentos do que é pago pelo município de São Paulo. Segundo valores levantados da Afip, o município está devendo à instituição R$ 1,3 milhão relativos aos últimos três anos de convênio. A prefeitura de São Paulo admite o déficit, mas não explica como vai sanar a dívida. Enquanto o impasse burocrático permanece, a situação de quem precisa do equipamento no município é crítica.
No domingo, José Maria Rodrigues, 47 anos, garçom, - uma das 133 pessoas encaminhadas pela rede pública de saúde ao instituto com avaliação positiva para a utilização do BiPAP - não pôde esperar mais. Há dois meses na fila por uma consulta no setor de Tratamento de Doenças Neuromusculares (TDN) Instituto do Sono, José, portador de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), teve que ser internado às pressas por conta de uma infecção respiratória.
- Não deu tempo, né? Ele vinha sofrendo muito e, no sábado, ele não aguentou mais. Se ele tivesse com o aparelho com certeza a situação seria outra. Não dá para avaliar se a infecção veio pela falta do aparelho, mas o que não ajudou foi ele ficar dois meses sem o BiPAP - relata a Sonia Maria Rodrigues, 51, que largou o trabalho há dois anos para cuidar do irmão.
Quem liga no TDN em busca de uma consulta recebe a mesma resposta: não há previsão para consultas a pacientes não cadastrados. Hoje, o setor tem 2.037 pacientes cadastrados ativos, dos quais 909 que utilizam ventilação mecânica. O município repassa por mês R$ 632,5 mil para a instalação e utilização dos aparelhos, enquanto a entidade gasta R$ 742,637 mil. A prefeitura admite o déficit a partir de setembro, mas discorda do valor apresentado ao GLOBO pela Afip. "Chegamos a uma situação limite. Até então, estávamos segurando o atendimento, mas não dá mais. Se não, vamos acabar afetando o atendimento de outros setores", explica a diretora-administrativa e comercial da Afip, Tânia Regina Noquelli, que admitiu que há aparelhos disponíveis na unidade, mas que só serão distribuídos após a regularização do débito.
Pacientes não podem esperar
Para representantes do Instituto Paulo Gontigio (IPG), entidade sem fins lucrativos que promove e incentiva a pesquisa científica e presta atendimento aos pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), enquanto o impasse não for resolvido, o atendimento tem que ser continuado:
- O impasse financeiro não pode ser a justificativa final para não atender os pacientes. Há aparelhos disponíveis e o município e a Afip tem que chegar num denominador comum. O atendimento dos pacientes de ELA e outras doenças neurodegenerativas não pode esperar - cobra a diretora administrativa do IPG, Silvia Tortorella.
Na quarta-feira, em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo informou que avalia uma mudança do sistema de regulação dos pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) ou outras doenças neurodegenerativas que utilizam equipamentos respiratórios (BiPAP).
Segundo o município, o convênio atual com a AFIP existe desde agosto de 2003 e prevê repasse mensal de R$ 623 mil, o que corresponde a 23 mil procedimentos. O valor foi fixado com base no número de pacientes que realizavam tratamento no ano da publicação, ou seja, em 2008.
Ainda de acordo com o município, "até 2012 a AFIP recebia os recursos pelos serviços executados, sempre abaixo do limite contratual". Entretanto, admite que em 2013 a entidade sinalizou ao município que passou a realizar atendimentos acima do contratado.
Em setembro a pasta solicitou à Secretaria Estadual de Saúde a autorização para aumento da verba destinada a este serviço. O pedido foi encaminhado ao Ministério da Saúde somente este mês e ainda não teve a aprovação federal.
- E até quando minha mãe vai esperar? - questiona a técnica administrativa Valéria Bela Possidônio, filha da dona de casa Lourdes Possidônio, que sofre as sequelas de uma doença neurodegenerativa desde agosto do ano passado.
As mãos arqueadas pela perda muscular tentam segurar o pedido de consulta encaminhado por seu médico ao TDN. Desde o dia 3 de abril, a filha tenta, sem sucesso, uma consulta. A cada dia as forças de Lourdes diminuem. Na segunda-feira, quando a equipe de O GLOBO foi a sua casa no Jardim Patente, extremo Sul da capital paulista, ela pesava 28 quilos. Respirando com dificuldade e sem conseguir se mexer sem ajuda da filha, Lourdes desabafa:
- É muito difícil não respirar. Hoje, estou bem, mas amanhã eu não sei - falou com a voz quase inaudível.
Em meio a entrevista com a filha, um ronco profundo rompe a conversa. A filha acode a mãe sem ar.
- Respira, mãe. Um, dois, três e respira. Espera que eu vou ligar o ventilador para te ajudar, mãe. Respira. Calma e respira...
Auditoria
Na quarta-feira, O GLOBO voltou a questionar o município sobre o que ia ser feito para casos como o de Dona Lourdes e outros 112 pacientes que aguardam receber um aparelho enquanto não há uma autorização do Ministério da Saúde para aumentar o repasse à instituição. A Secretaria Municipal da Saúde informou, ontem, que fará uma auditoria nos serviços prestados pela AFIP de abril de 2012 até o momento e quitará os procedimentos que possam ter sido realizados acima do teto no que se refere ao BiPAP. O município também irá autorizar a conveniada a iniciar o atendimento dos cerca de 100 pacientes que aguardam na fila.
A secretaria de Saúde afirma que a partir desta sexta-feira, a marcação de consultas será normalizada no TDN. Os 113 pacientes que estavam na fila poderão, enfim, respirar um pouco mais aliviados.
FONTE:
http://oglobo.globo.com/sociedade/pacientes-com-doencas-degenerativas-sem-acesso-respirador-em-sp-12655503
http://oglobo.globo.com/sociedade/pacientes-com-doencas-degenerativas-sem-acesso-respirador-em-sp-12655503
Imagem meramente ilustrativa